Educação de jovens e adultos no contexto nacional e regional

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E o governo vem anunciando em vários lugares a Alfabetização solidária, que na origem é uma boa idéia, mas propagandeada como está, dá a impressão que o problema do analfabetismo está sendo rapidamente resolvido.  Só para lembrar a vocês: o governo, através da Comunidade Solidária, em quatro anos, alfabetizou até agora, 200 mil pessoas no país inteiro com apoio federal e de algumas empresas.  Porém, faltam apenas 17 milhões e oitocentos mil analfabetos totais a serem alfabetizados... O quê nos cabe, então?  Nos cabe olhar e recusar a idéia de que não há alternativa.  Sim, há, e para isto não basta ter vontade política, é preciso ser competente, e competência se faz junto. Há muitos alfabetizadores que ainda pensam que alfabetizar é só ensinar o código matemático e lingüística, só ensinar a ler e escrever.  Não, isto é pouco, o método não é neutro, o método precisa estar comprometido com a liberdade coletiva, o método deve estar com­prometido com a dignidade humana.

Vou dar um exemplo pessoal: eu, Mario Sergio, sou de Londrina, cidade agrícola do Paraná; fui alfabetizado em 1960 pela cartilha Caminho Suave que muitos usaram, lembram-se? É uma antiga e boa cartilha, mas, como qualquer livro ou método não é sempre bom, em qualquer lugar e época ou para qualquer pessoa.  Em 1960, em Londrina, na minha cartilha, Eva via uvas, e eu, Mário Sérgio, também as via, porque uva fazia parte da minha realidade.  A questão é que 1960 em Caicó, no sertão de Seridó, no Rio Grande do Norte, também se usava a Caminho Suave, em nome da idéia de que era um método que ser­viria para qualquer aluno.  Em 1960, em Caicó, havia um menino chamado Donizete, que como eu ia ser alfabetizado pela Caminho Suave e, claro, Eva via uvas na cartilha, mas o Donizete não via uvas na realidade dele.  Sabem qual foi o resultado?  No final do ano, o Donizete não estava alfabetizado, porque uva não fazia sentido para ele.

O que fizeram para resolver o problema do Donizete?  Nada, repetiu o ano, e, com, a mesma cartilha, Eva continuou vendo uvas, mas o Donizete continuou sem vê-las, o que o fez repetir a série pela terceira vez, com a mesma Eva vendo uvas e ele sem vê-las. Sabem qual foi a conseqüência?  No final do ano o Donizete foi reprovado e o pai o tirou da escola dizendo: "O meu filho não dá para o estudo e agora vai trabalhar".  E o Donizete saiu da escola, crente que era um “burro" e a professora, sem perceber, ainda deixava transparecer esta idéia.

Contei este fato do Donizete com a Caminho Suave, mas poderia acontecer com outra cartilha.  Em Minas Gerais e no interior de São Paulo era (e, em alguns lugares, ainda é) usada  a Cartilha do Sodré, que, como qualquer livro, não é sempre bom para qualquer pessoa, em qualquer lugar e época.  

Nesta cartilha, lá pelas tantas, se ensina a criança a noção de encontro consonantal e com o exemplo do encontro da consoante D com a consoante R, a palavra e o desenho para esta criança aprender é de um dromedário! Na realidade brasileira (ainda mais a interiorana do passado) um ser estranho.  Para ensinar dígrafo (muito mais complicado, pois parece encontro consonantal sem sê-lo), a cartilha exemplificava o LH com a palavra (e desenho) lhama, um ser que dificilmente encontraríamos fora dos Andes.

Sabem qual foi a conseqüência?  Eu, Mario Sergio, em Londrina ano de 1960, filho de uma professora com um bancário, poderia nunca ter encontrado com uva, Ihama, dromedário, que não haveria problema, porque meus pais eram alfabetizados, em casa se lia jornal e se viajava (um dos melhores meios de aprender), ia-se ao cinema e no círculo de amizade todos os pais dos meus colegas tinham o mesmo nível de escolaridade.  Portanto, caso eu não visse, não me faria falta mas, e para o Donizete?  Sabem qual foi a conseqüência?  Ele que nunca viu uva, lhama, dromedário foi reprovado várias vezes e saiu da escola.

 

Continua